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domingo, 28 de agosto de 2005

Fábulas Modernas





O DESTINO
(À maneira dos... coreanos)


Encontraram-se os dois chineses.
- Olá, Shen. Tau, por onde andou?
- Ah, passei seis meses no hospital, Shin-Fon.
- Eh, isso é mau!
- Nada. Isso é bom: casei com uma enfermeira bacaninha.
- Ah, isso é bom!
- Que o que - isso é mau. Ela tem um gênio dos diabos.
- É, isso é mau.
- Não, não, isso é bom; o avô dela deixou uma herança e eu não preciso trabalhar porque ele acha que só eu sei cuidar do gênio dela.
- Oh, oh, isso é que é bom!
- Oh, oh, isso é que é mau! Com o gênio dela, às vezes não me dá um níquel. E como eu não trabalho, não tenho o que comer.
- Xi, isso é mau!
- Engano, isso é bom. Eu estava ficando gordo e mole - vê só, agora, o corpinho com que eu estou.
- É mesmo - isso é bom!
- Que bom! Isso é mau. As pequenas não me deixam e acabei gostando de outra.
- Epa, isso é mau mesmo.
- Mau nada, isso é bom. Essa outra mora num verdadeiro palácio e me trata como um príncipe.
- Então isso é bom!
- Bom? Isso é mau: o palácio pegou fogo e foi tudo embora.
- Acho que isso é realmente mau!
- Mau nada: isso é bom. O palácio pegou fogo porque minha mulher foi lá brigar com a outra, virou um lampião e as duas morreram no incêndio. Eu fiquei rico e só.
- Isso... é bom... ou é mau, Shen-Tau?
- Isso é muito bom, Shin-Fon.


MORAL: NADA FRACASSA MAIS DO QUE A VITÓRIA, E VICE-VERSA.

(FERNANDES,Millôr. Fábulas Fabulosas.Rio de Janeiro: Nórdica, 1997.)

A sátira a aspectos convencionais da vida social é frequente nos textos de Millôr . Leva o leitor a rir, a pensar e pensar-se. Sua maneira de narrar contrasta com a seriedade da fábula tradicional.
Passamos nossa vida optando entre o certo e o errado,entre o bem e o mal. Sabemos que as normas morais
variam entre sociedades, mas alguns indivíduos criam sua moral particular e não levam em consideração
o bem comum. A justiça, a solidariedade, a fidelidade, a honestidade são valores morais universalmente aceitos. Nesta fábula notamos que levar vantagem sobre o outro é uma prática tão antiga quanto a existência do homem. "Isso é muito mau!".


Perder ou ganhar? Eis a questão!

domingo, 21 de agosto de 2005

Podres poderes

"Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome, de raiva e de sede
São tantas vezes gestos naturais."


Caetano Veloso

Os animais e a peste

Em certo ano terrível de peste entre os animais, o leão, apreensivo, consultou um mono de barbas brancas.
- Esta peste é um castigo do céu - respondeu o mono, e o remédio é aplacarmos a cólera divina
sacrificando aos deuses um de nós.
- Qual? - perguntou o leão.
- O mais carregado de crimes.
O leão fechou os olhos, concentrou-se e, depois duma pausa,disse aos súditos reunidos em redor:
- Amigos! É fora "de dúvida que quem deve sacrificar-se sou eu. Cometi grandes crimes, matei centenasde veados, devorei inúmeras ovelhas e até vários pastores. Ofereço-me, pois, para o sacrifício necessário ao bem comum.
A raposa adiantou-se e disse:
- Acho conveniente ouvir a confissão das outras feras. Porque, para mim, nada do que Vossa Majestade alegou constitui crime. Matar veados - desprezíveis criaturas; devorar ovelhas - mesquinho bicho de nenhuma importância; trucidar pastores - raça vil, merecedora de extermínio! Nada disso é crime.São coisas que até muito honram o nosso virtuosíssimo rei leão.
Grandes aplausos abafaram as últimas palavras da bajuladora- e o leão foi posto de lado como impróprio para o sacrifício.
Apresentou-se em seguida o tigre e repete-se a cena. Acusa-se ele de mil crimes, mas a raposa prova que também o tigre eraum anjo de inocência.E o mesmo aconteceu com todas as outras feras.Nisto chega a vez do burro. Adianta-se o pobre animal e diz:
- A consciência só me acusa de haver comido uma folhade couvena horta do senhor vigário.
Os animais entreolharam-se. Era muito sério aquilo.A raposa toma a palavra:
- Eis, amigos, o grande criminoso! Tão horrível o que elenos conta, que é inútil prosseguirmos
na investigação.A vítima a sacrificar-se aos deuses não pode ser outra,porque não pode haver
crime maior do que furtar a sacratíssima couve do senhor vigário.
Toda a bicharada concordou e o triste burro foi unanimemente eleito para o sacrifício.


Aos poderosos tudo se desculpa; aos miseráveis nada se
perdoa.


(LOBATO, Monteiro. Fábulas. São Paulo: Brasiliense,
1999. p. 31

Monteiro Lobato recria e reconta fábulas de Esopo e de La Fontaine, além de contar suas próprias fábulas. Ele acreditava que devemos valorizar nossa cultura. Preocupava-se em preparar as crianças para a vida em sociedade.
Em seu livro Fábulas, a turma do Sítio do Picapau Amarelo comenta as histórias. Como os outros, ele usou
as fábulas para denunciar e criticar as injustiças. É bom lembrar que na época em queele viveu não havia
liberdade de expressão.

Poderosos, bajuladores, covardes, hipócritas não exitam em salvar a própria pele e condenam um inocente.
As mazelas da sociedade e as relações de poder estão retratadas nessa fábula. Embora desiludidos, não
desistamos. "O azar daqueles que não gostam de política é serem governados por aqueles que gostam", disse uma vez um pensador .Ou,então...

"Será que será que será que será
Que essa minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais mil anos?"


Mais uma vez Caetano, porém não podemos fracassar desta vez!

domingo, 14 de agosto de 2005

Justiça para quem precisa


No século XVII, Jean de La Fontaine reescreveu e adaptou as fábulas de Esopo, além de criar novas histórias. Nesta época, valorizavam-se histórias sobre heróis belos e bons, leais e justos, mas os poderosos enriqueciam explorando os camponeses. Para denunciarestas injustiças, La Fontaine, criticava o comportamento da sociedade contando fábulas em versos, pois a poesia, além do teatro, era muito valorizada. Foi neste tempo que começou a separação entre mundo infantil e mundo adulto. As histórias
foram adaptadas para crianças retirando-seos elementos violentos, considerados prejudiciais à educação.Na realidade nem sempre o bem vence o mal e La Fontaine questionava os valores da época e denunciava as misérias da sociedade usando a ironia, pois conspirar contra poderosos levava à morte. Conta-se que para protestar contra a prisão injusta de seu amigo Nicolas Fouquet, superintendente de finanças do rei da
França, Luís XIV, ele publicou a seguinte fábula:










O Lobo e o Cordeiro

Na água limpa de um regato,
matava a sede de um Cordeiro,
quando, saindo do mato,
veio um Lobo carniceiro.


Tinha a barriga vazia,
não comera o dia inteiro.
- Como ousas sujar
a água que estou bebendo?
- rosnou o Lobo, a antegozar
o almoço. - Fica sabendo
que caro vais me pagar!


- Senhor - falou o Cordeiro -
encareço à Vossa Alteza
que me desculpeis, mas acho
que vos enganais:bebendo,
quase dez braças abaixo
de vós, nesta correnteza,
não posso sujar-vos a água.


- Não importa. Guardo mágoa
de ti, que ano passado,
me destrataste, fingido!
- Mas eu nem tinha nascido.
- Pois então foi teu irmão.
- Não tenho irmão, Excelência.
- Chega de argumentação.
Estou perdendo a paciência!
- Não vos zangueis, desculpai!
- Não foi teu irmão? Foi teu pai
ou senão teu avô -
disse ao Lobo carniceiro.
E ao Cordeiro devorou.


Onde a lei não existe, ao que parece,
A razão do mais forte prevalece.



Fábulas de La Fontaine. Tradução de Ferreira Gullar.
Rio de Janeiro, Revan, 1997.

Tantos argumentos para nada? Sempre a decisão dos poderosos sem levar em conta a opinião do cordeirinho?
Sabemos que sem padrões de justiça não é possível administrar a sociedade. A corrupção atinge todas as esferas da sociedade. Estamos num clima de desconfiança generalizada e o desprezo à lei dá lugar ao oportunismo, incentivando comportamentos desonestos.O que podemos e devemos fazer além de
ficar tão somente criticando, pois o povo diz que falar é fácil, difícil é fazer?

domingo, 7 de agosto de 2005

Armação sem limites!


 Esopo morreu vítima de uma mentira inventada pelo povo de Delfos, cidade da Fócida onde estava o mais importante oráculo da Grécia. Conta-se que Esopo ironizou os habitantes  porque não trabalhavam, viviam das oferendas ao deus Apolo e comparou-os a varas flutuando no mar, de longe, parecem algo de valor,
porém de perto nada valem. Então, tramaram uma vingança: esconderam um objeto sagrado na bagagem de Esopo. Acusado de roubo foi condenado à morte e atirado do alto de um rochedo. Mesmo assim, ainda contou mais uma fábula:










O Rato e a Rã

Um rato da terra, para sua infelicidade, tornou-se amigo de uma rã. E a rã, premeditadamente, acorrentou a pata do rato à própria pata. Primeiro foram comer trigo na terra e, depois de se aproximarem da margem de uma lagoa, a rã jogou o rato no fundo da água, enquanto ela própria ficou brincando na água, gritando:

"brekekekecs!". E o infeliz rato afogou-se e morreu, mas continuava emergindo, por estar preso à pata da rã. Um milhafre, ao ver isso, pegou o rato com suas garras. Mas a rã, presa pela corrente, seguiu-o e tornou-se ela também alimento para o milhafre.


Mesmo morta uma pessoa tem força para vingar-se,
pois a justiça divina olha por tudo e sempre
retribui com um castigo igual.


Até quando vamos esperar por um milhafre?
A seguir: Fábulas de La Fontaine.